Blue Velvet

quinta-feira, março 31, 2005

Violação de Privacidade

Regresso ao vosso convívio com um assunto pouco agradável. Diria mesmo, um assunto de merda. Numa sociedade cada vez mais voyerista, ávida da privacidade alheia, o Homem necessitou de encontrar locais de refugio, onde o olhar indiscreto e inoportuno não fosse capaz de penetrar, onde o Homem se pudesse exprimir em toda a sua plenitude, sem medo de censuras ou julgamentos. O Homem sempre necessitou de momentos de solidão e introspecção. Hoje, esses lugares são cada vez mais reduzidos, rareando no mundo civilizado. E mesmo o ultimo reduto, o retiro total, o bastião da solidão, está a desaparecer na sua forma hermética e absolutamente estanque. Estou a falar, como todos já devem ter percebido, da casa de banho.
A casa de banho tem sido um local de culto, onde lemos aquilo que nos dá na gana, onde contamos o número de azulejos da parede, onde fazemos barulhos nunca revelados ao mais intimo dos amigos, onde estudamos a composição química de cremes, loções, analgésicos, pomadas e anti inflamatórios, ou onde simplesmente nos sentamos descansados a pensar no dia que passou, no que há-de vir, no que poderia vir, ou no que nunca virá. É um descanso do mundo exterior, um descanso mental, minutos de puro relaxamento, livros devorados, revistas desinteressantes folheadas apaixonadamente, enfim. São o que eu chamo de revistas de merda. Aquelas com notícias do mundo social. As mais apropriadas para uma latrina.
A verdade meus amigos, e que essa pequena fortaleza da nossa intimidade tem sido vandalizada. Depois do fast food, teria inevitavelmente que ser introduzido o conceito do fast shit. O conceito é o seguinte: tira-se todo o conforto, toda a sensação de segurança a uma casa de banho, e as pessoas usam-na menos tempo e menos vezes. A casa de banho tornou-se um espaço aberto, de comunhão e intercâmbio. Segundo este conceito, ao entrarmos numa casa de banho destinada a vários usuários, como em shopings, empresas, espacos públicos, deparamos com um espaço para a intimidade reduzidissimo, aberto junto ao chão e acima da cabeça, apenas resguardando a privacidade mínima. São autênticas barracas pré fabricadas de qualidade duvidosa que nos separam do mundo exterior. É uma verdadeira violência tentar ter um momento relaxado, quando é possível ver as sombras de pessoas apressadamente a dirigirem-se para os urinóis, sermos bafejados pelo sopro indiscreto da maquina de secar as mãos, ouvirmos as conversas exteriores, ouvir a porta a abrir, a porta a bater. É um momento de alerta constante, em que estamos sempre a ver quem entra, quem sai, e é um alivio quando o espaço se esvazia, voltando a pertencer-nos exclusivamente. Esforçamo-nos por não nos fazer notar, e jogamos o timing dos nossos afazeres com a baforada ruidosa da máquina de secar as mãos ou com a descarga do urinol. E se nos descuidamos fora de tempo e damos sinal de presença, pensamos “vão-me reconhecer pelas sapatilhas!”, enquanto tentamos elevar os pés a uma altura de segurança. O que é feito das paredes? Das portas até ao chão? Depois disto, o que falta?