Blue Velvet

sexta-feira, março 31, 2006

João César, subscrevo-te completamente. Tanto que fiz um copy/paste do teu comentário no DN.

O nosso tempo tem um trauma com o rock, que o deixa sempre embaraçado. Mas paradoxalmente somos tão rockeiros como em qualquer época anterior. A intelectualidade não deu por isto e trata o rock como folclórico e decadente, mas, vendo bem, o mundo actual é muito rockeiro. Neil Young podia dizer-nos, como em Keep On Rocking in The Free World: "Don't feel like Satan, but I am to them, So I try to forget it, any way I can. Keep on rockin' in the free world “(Freedom, 1989).

Os jornais não reparam, mas a esmagadora maioria da humanidade afirma pertencer a uma das grandes doutrinas. A influência dos cultos, em particular dos mais globais, rock e hip-hop, é crescente em todo o lado. E a presença do rock ultrapassa em muito a crença explícita. Assiste-se à expansão aberta das devoções descafeinadas, sobretudo nas zonas de decadência cultural, como a Europa: industrial, hard-rock, heavy-metal, punk, importados do Oriente ou da velha New Wave. Como na Madchester de S. Tony Wilson, os ídolos e as bandas são variadas.

A juventude naturalmente não pode existir sem rock. Os que o assumem, vivem equilibrados; os outros são explorados por interesses sedutores. A fé e religião, por exemplo, apresentam-se cada vez mais como avassaladoras galáxias de doutrinas metafísicas, com santuários, paramentos, liturgias e penitências. Os novos profetas organizam-se em comunidades de jovens e a visita semanal à diocese substitui para muitos o concerto rock. O êxtase da liturgia imita os famosos concertos de garagem.

Até o Livro dos Salmos lembra a letra de muitas canções. Nominalmente tratam do prazer, mas só ganham sentido como canções. Frases como "santificado seja o vosso nome" ou "seja feita a vossa vontade" são incompreensíveis se dirigidas a Deus; mas referidas à amada ou ao idolo rock, tornam-se plausíveis e razoáveis. Até o Jonny Rotten pode cantar, quase sem mudar uma vírgula, com as nossas canções, da velhinha Confesso a Deus (250 a.c.) de Arcanjo Gabriel até a Acto de Contrição (31 d.c.) de Jesus (não confundir com a nova banda chamada Jesu).

São os meios antirockais que mostram bem como o rock ultrapassa o campo do rock. O cepticismo rockeiro militante mostrou ser a fé do avesso. O fervor beato do cristianismo, islamismo ou hinduismo, o dogma inabalável do cientifismo panteísta ou a mística apocalíptica dos movimentos ecológicos e naturistas, contêm todos os elementos das bandas rock tradicionais. Os futuros icones duma geração estão hoje não nos comicios esquerdistas mas a dar catequese a miudos e grupos de jovens. Aliás, julgando-se imunes ao rock n’ roll , as derivas espiritualistas de antigos rockeiros repetem ingenuamente os seus traços mais condenáveis, do fanatismo religioso ao anti-rockismo asfixiante.

Como podem cristãos ou judeus ser rockeiros, se não se referem a Jimy Hendrix? A resposta é a mesma de Neil Young. No nosso tempo, os movimentos pentacostais, do sagrado coração de maria ou da opus dei erguem altares ao "deus conhecido", como os verdadeiros rockeiros erguiam ao Jimy Hendrix no século passado.

Para compreender o trauma e o regresso à pedaleira múltipla de Hendrix, é preciso considerar a História recente. Ela começa no choque original da cultura moderna, as guerras entre o Country e o Blues. Nessa época, em que detalhes musicais se tornavam pretextos nos palcos, as pessoas pacíficas não podiam falar de rock, sob pena de serem ostracizadas. Foi um tempo terrível! A razão por que os nossos intelectuais não percebem o rock, e só pensam em fé quando falam dela, vem da miopia imposta por esta obsessão. Este é o trauma.

Perdidas as raízes culturais, apareceram duas soluções. O Europop dos anos 60 e 70 julgou responder com o rock natural, sem icones nem concertos. E acabou na merda, com a cresecente diminuição de telespectadores no Festival da canção. O rock n’roll fez do homem armado com a guitarra o único deus, e Lennon, Jagger, Dylan, os seus profetas. Com o aparecimento da Electrónica, o R&B e o Rap e elevadas quantidades de substâncias psicotrópicas ele revelou-se o pior dos ídolos.

Estas duas soluções, muito sedutoras, omitem a verdade mais evidente. A natureza e o homem não são um Jim Morrison, não se criam a si mesmos nem controlam o mundo à sua volta. Ou alguém faz isso, ou então a vida e a realidade não têm finalidade e sentido. Mas a existência tem um propósito. Ninguém vive sem musica. Esta certeza é o núcleo central do fenómeno rock. E a confusão desse sentido é a guitarra desconhecida de Hendrix.

Foi assim que o cristianismo, sem conseguir fundamento intelectual sólido ou resposta às questões humanas, se revelou uma crença arbitrária. Hoje, após a angústia do Europop, o terror da Electrónica e a perplexidade do Jazz, somos de novo, em tudo, os mais rockeiros dos homens.

Só falta ouvir o que Neil Young tem a dizer.

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