Tobias, Chamemos-lhe Assim...
Hoje morreu o meu canário. Raio de altura para o estúpido do animal morrer! Semeou o pânico na minha rua. A minha mãe selou a marquise em quarentena, e neste momento a minhas calças de ganga preferidas estão em suspenso, literalmente, á espera de decisão superior do conselho veterinário cá de casa.
O bicho não tinha nome, coitado. Para falar a verdade eu já nem me lembrava que tinha um canário em casa. O Tobias, chamemos-lhe assim, era amarelo, fazendo jus à selecção que lhe deve o nome. Se me tinha lembrado disto, ter-lhe-ia posto com certeza o nome Celeste, contrapondo a sua natureza canarinha com a grande raça argentina, a minha selecção de eleição. Lembro-me, seria hipócrita se dissesse “com saudade”, mas lembro-me, de o ouvir cantar em prósperos dias de Primavera, a celebrar a luz do sol e a dádiva da alpista que nunca faltou no seu pequeno contentor. Era dele o lugar de destaque, quando na minha marquise convivia a nata intelectual do mundo pássaro, com os periquitos, os bicos de lacre e uma arrogante caturra a comporem o ramalhete. Mas Tobias, chamemos-lhe assim, reluzia altivo do alto da sua gaiola, o galho mais alto da marquise. Nas noites frias de Inverno era recolhido para aquele hiato arquitectónico entre a cozinha e a sala, há quem lhe chame copa, não fosse o frio ser prejudicial para as suas cordas vocais ou vir-se a dar o caso de o bicho desenvolver qualquer tipo de reumatismo. Para além disso, a gaiola era tapada com um pequeno cobertor. Os outros ficavam na marquise, mas sempre de bico erguido, não se deixando acometer pela inveja dos privilégios alheios.
Hoje vivem-se tempos difíceis para os pássaros. A minha mãe sempre tentou evitar que Tobias, chamemos-lhe assim, ouvisse as notícias alarmistas dos noticiários sobre a gripe das aves. Eu sempre discordei, e duvido mesmo que Tobias, chamemos-lhe assim, estivesse ciente da sua condição de ave. Tentei explicar à minha mãe que ave é um conceito humano, desenvolvido pelos mestres da taxionomia e classificados segundo uma lógica evolucionista que agora não interessa nada aprofundar. Mas a minha mãe sempre resguardou o bicho do terror porque passam os seus semelhantes por esse mundo fora. Irónico, que os seus parentes que tiveram a pretensa sorte de nascer e crescer em liberdade, longe das finas tiras de arame das gaiolas, livres para escolherem por onde voar, estejam agora em posição desvantajosa face a esse vírus egoísta que devasta essa fina classe que é a das aves. Mas hoje Tobias, chamemos-lhe assim, morreu. Ele era velho. Poderia ser do coração. Ataque fulminante. AVC. Mas nesta era da globalização vírica, outra hipótese salta à vista: gripe das aves. Pois sele-se a marquise a bem da saúde pública. Tobias, chamemos-lhe assim, escolheu mal a altura para morrer. E entretanto é sexta-feira à noite e as minhas calças de ganga preferidas jazem no estendal da marquise, confiscadas em nome de um bem maior, inertes e sem a graça que só umas pernas lhes podem dar.