A Propósito Das Quotas
Com esta coisa da lei da paridade surgem-me sentimentos contraditórios. Por um lado acho que a lei acaba por ser humilhante para as mulheres, pois consagra-lhes por decreto aquilo que elas como grupo ainda não conseguiram atingir. Acredito que desperte um sentimento de frustração em mulheres como Odete Santos, uma fervorosa defensora dos direitos das mulheres, ver a sua luta resolvida por um despacho legal. Mas por outro lado, deveremos ficar parados face a uma evolução que não surge? É assim tão mau querer dar a mão a milhares de mulheres que por uma razão ou outra têm sido discriminadas silenciosamente? Li em mais que um artigo de opinião, como o editorial no Público do José Manuel Fernandes, que uma lei deste tipo é uma tentativa de mudar mentalidades por imposição legal, e foi pintado um cenário maniqueísta como se o governo tentasse manipular vontades globais como as de um povo através de um dispositivo legal proteccionista de discriminação positiva. Era aliás dito no artigo que a representação feminina no parlamento evoluiu em 30 anos de 6% para os 26% actuais, e sugeria-se que se deixasse ao tempo a evolução cultural e mental de todo um povo que continuasse a elevar esses número naturalmente. Esquece-se que estes 26% são conseguidos em grande parte ás custas de um partido que impôs internamente quotas de representação feminina.
Eu penso que nem tanto ao mar nem tanto à terra. Concordo que acabará por saber a pouco um lugar ganho por discriminação positiva, e poderá até fazer pairar a ideia de que se ocupa um lugar para fazer número nas listas dos partidos. Poderá haver uma aura de dúvida sobre o mérito próprio de tal lugar. Mas por outro lado, se virmos as coisas de forma diferente, poderá também abrir portas a mulheres de mérito e valor que outrora se fechavam por desconfiança de uma sociedade latina de preconceitos machistas baseada numa estratificação patriarcal. Ou seja, o conceito poderá beliscar o orgulho de mulheres inteligentes e valorosas que preferem ganhar o seu espaço com base na luta diária por uma auto afirmação como pessoa, e em última instância como género, em vez de verem a sua escalada ser facilitada por um sistema quotas. Mas, por outro lado, esta lei pode vir a dar visibilidade a mulheres que de outra forma poderiam encontrar obstáculos para sair da sombra dos partidos altamente masculinizados, onde apenas um punhado de mulheres consegue esgravatar até uma posição de destaque. Pode até encorajar mulheres que se sentiram discriminadas no passado a voltarem a procurar um lugar onde defender as suas ideias, pois sabem que há um lugar para elas.
É muito fácil analisar esta situação de forma simplista e demagógica como tenho lido em vários textos. É muito fácil dizer que as mulheres se devem afirmar por direito próprio e que numa sociedade ideal não deve haver obstáculos claros ou obscuros a essa afirmação. Mas a verdade é que há obstáculos, antes de tudo, culturais. Também seria muito fácil dizer que numa sociedade evoluída uma pessoa deve ter assimilada a ideia que não pode matar outra, ou que não se deve conduzir embriagado, mas a verdade é que essas verdades universais e básicas são violadas constantemente. O que seria hoje do mundo de Abraham Lincoln não tivesse libertado os escravos por lei, e tivesse antes esperado que os seus exploradores fossem iluminados por uma luz humanista que os levasse, sem tumultos, a libertá-los de livre vontade? E não nos esqueçamos que ainda há muito pouco tempo no mundo considerado civilizado as mulheres não tinham direitos como o voto. Apesar da tristeza que nos deve invadir por ser preciso haver uma lei que obrigue os partidos a ter mulheres nas suas listas, não devemos ser tão duros com a existência dessa lei. Não devemos deixar que a frustração por não termos conseguido ainda chegar a um patamar que nos permita praticar a igualdade nos leve a odiar uma lei que a impõe. Por ventura, no futuro, todos nos habituaremos a ver mulheres em lugares de destaque, e o preconceito que se move discreto no seio dos portugueses se vá desvanecendo, e então as mulheres que ganharam terreno à força de uma lei serão reconhecidas por mérito próprio, tal como as incompetentes serão afastadas por uma selecção natural, não devendo haver lei que perpetue ou pactue com a mediocridade, feminina ou masculina.