Durante a última semana houve eleições no estado da Califórnia. Estavam em causa a nível estadual 8 propostas do Terminador, aliás, do Governador, que tinham a ver com algumas propostas de alteração a leis estaduais. Era, portanto, um referendo. Muito genericamente, algumas tinham a ver com os direitos dos funcionários públicos, outro tinha a ver com o aborto em jovens menores em caso de violação e com a respectiva informação e autorização dos pais, outra com os professores, e por aí fora. Depois, no condado de San Diego havia a eleição do Mayor, o maior cá do sítio. O lugar de Mayor em San Diego não tem aquecido com os seus ocupantes. Aqui há meses, só numa semana 3 Mayors diferentes ocuparam o cargo. Escândalos de corrupção, tráficos de influências, promiscuidade com imobiliárias. Enfim, como podem ver o nosso cantinho da Europa não sofre de males únicos. Trafulhice há em todo o lado. É que nós gostamos muito das frases tipo “isto só aqui!...”, e por aí fora. Mas adiante…
O método de eleições é muito diferente do nosso. Não há um dia específico para a eleição, mas antes esta ocorre durante uma semana. Os eleitores, se estiverem para se chatear, vão ás bibliotecas públicas, à direcção geral de viação, ou a outros organismos públicos, recolher o seu boletim de voto. Podem depois entregar o boletim de voto quando e onde quiserem, até à data limite. O período alargado de voto até poderia ser positivo, dando mais tempo para votar. Mas quanto a mim, retira a espécie de solenidade nacional que o acto em geral encerra por exemplo em Portugal, e em que uma pessoa se sente positivamente levada a votar.
Na noite final da votação vi finalmente cobertura televisiva das eleições. Eu não devoro televisão, mas ela anda ligada lá para casa, e vejo de esguelha muitos noticiários, e nunca vi grandes notícias sobre as campanhas e as eleições. Ao ver os resultados pude ver que nenhuma das propostas do Governador Conan o Bárbaro passou, e qual era o novo Mayor aqui de San Diego. Mas o que me chamou mais a atenção foram os números da votação. Em San Diego, para eleger o Mayor, se não me engano votaram cerca de 300.000 pessoas no total, e o condado de San Diego é enorme e muito povoado, cerca de 3.000.000 em todo o condado, sendo San Diego a segunda maior cidade da Califórnia. Ou seja, uma abstenção enorme. Também é curioso verificar que as matérias levadas a referendo tiveram o dobro da adesão. Isto são números baseados naquilo que vi na televisão e na net. Mas qualquer que seja o modo de contar os votos e os votantes, parecem-me números muito baixos.
Nos EUA parece-me que interessa manter o manter povo desinteressado, sem provocar grandes ondas, sem pôr grandes questões, e governar tranquilamente. Claro que nas presidenciais há que mobilizar o povo, mas mesmo assim há uma franja enorme da população que nem sequer está registada, especialmente população pobre e desfavorecida. E depois claro que a contagem da abstenção até é baixa, mesmo que 60% dos americanos não tenham ido votar, porque as percentagens são contabilizadas entre eleitores registados. Mas se virmos a forma como a informação é tratado nos Estados Unidos, como as pessoas (não) são informadas, percebemos a visão distorcida do mundo que grande parte dos americanos tem. Sei que já falei dele aqui, mas aconselho de novo a que leiam Noam Chomsky, um brilhante e ímpar pensador americano, especialista em linguística e comunicação, e em política norte americana. É um fervoroso crítico das políticas externas americanas, e fala disto que eu estou a dizer, do adormecimento da população, da falsa democracia que aqui se vive, da privação de informação e da distorção de factos e acontecimentos. Mais uma vez digo que aqui se vive uma ditadura silenciosa. As pessoas são mantidas na linha, pela indução da estupidez e ignorância, e por alguma repressão, que passa por uma força policial violenta e irascível, uns serviços de segurança e serviços secretos omnipresentes, e pela indução do medo nas pessoas. Ou seja, se as pessoas estiverem com medo, dos terroristas, da violência urbana, ou seja do que for, aceitam muito mais facilmente medidas extremas que possam supostamente melhorar a sua segurança, mas que no fundo estão a privar o comum cidadão do seu livre arbítrio e da sua privacidade. A verdade é que San Diego é uma cidade pacata e tranquila, com imensa gente sorridente, prestável e simpática. Mas é tudo demasiado artificial. As pessoas parecem ter medo de serem inconvenientes, antipáticas, de levantarem questões. E se levanto eu uma questão complexa, sou olhado com perplexidade, como se tivesse violado o pacto de não agressão vigente. Rola tudo numa paz podre, numa fantasia que me faz lembrar aqueles filmes com personagens estranhas e bizarras de um David Lynch, ou então o povo adormecido pelo Soma do Admirável Mundo Novo do Aldous Huxley. Assim, não me admira que ninguém vá votar, que ninguém se interesse pelos políticos, ou pelos destinos da sua comunidade, e prefira babar em frente a uma televisão que destila entretenimento fácil e barato e volta e meia as notícias do bairro. Também não me admira que os políticos não se importem muito com isso. E não me admira que permitam a existência de cómicos e artistas ultra críticos do seu próprio país e governo, ainda que estes critiquem o governo e os políticos com uma violência que muitas vezes como não vê na Europa, e mais concretamente em Portugal. E permitem porque a mensagem não chega a todos, atingindo apenas uma pequena franja de iluminados que: 1- têm acesso ao canal; 2- tendo acesso ao canal, têm interesse em ver; 3- têm a mínima preparação intelectual e cultural para perceberem metade daquilo que é dito. Ou seja, talvez um terço da população das grandes cidades dos litorais americanos, e mais umas migalhas espalhadas pelo resto do país. Dentro desses artistas destaco o óbvio Jon Stewart, o cínico e incisivo Bill Maher, ou o irascível e rebelde George Carlin. Podia falar de muitos mais, mas acho que estes três são uma boa amostra. Todos estes senhores primam pelo constante ataque ás políticas americanas, à hipocrisia que aqui se vive, ás contradições, a ridicularizar chavões americanos e a dar uma visão mais plural sobre a América e o mundo. Claro que, ainda assim, estes senhores passam apenas em canais de cabo, que ao contrário do que possam pensar chegam apenas a uma pequena percentagem de americanos. E assim se governa sem grandes tumultos sociais um país do tamanho de um continente. Fala-se ás vezes sobre África na velha metáfora de que se deveria dar a cana e ensinar a pescar, em vez de dar de comer. Nos Estados Unidos ensinam o povo a pescar, mas só sardinha, e ao mesmo tempo dão de comer hamburguers, tacos e burritos até empanturrar, e ninguém sabe que existe robalo ou cherne. E é assim que a maior parte acaba obeso de hamburguers, deixa de se interessar por pescar sardinha, e nunca há-de querer cherne ou robalo porque não sabe que existe, não sabe ao que sabe, nem como se parece. É uma metáfora demasiado elaborada para chegar a ser feliz, mas acho que me fiz entender…