O senhor Alfredo Conceição Valentim era um homem calmo e pacato, mestre na arte das ferragens. No café os amigos chamavam-no de Ção Velentim, ou como era carinhosamente conhecido, São Valentim. S. Valentim tinha a sua oficina de ferragens por baixo de sua casa, um duplex com TV Cabo (Sport Tv incluída), banheira de hidromassagem e dois dálmatas de porcelana a guardar a porta. A oficina era o local onde S. Valentim transbordava a sua arte a moldar ferro fundido. Tinha começado em novo, como ajudante de um amigo do pai que era paneleiro. Mas fazer panelas começou a ser pouco para a ambição de S. Valentim e para a arte do seu martelo. Com a cara queimada dos fornos de forjar foi pedir a garagem emprestada ao pai e dinheiro ao seu padrinho, um merceeiro rico da baixa da cidade. O padrinho foi fácil de convencer. Via naquele menino um prodígio das ligas metálicas. Mas o pai resistia em deixar S. Valentim abandonar de vez a escola e começar a trabalhar por conta própria aos 13 anos. Um dia, S. Valentim deu uma prenda ao pai pelos seus anos. Era uma gaiola em ferro trabalhado para o seu canário Micael. Para além de adornos e floreados como só vira no Mosteiro da Batalha, a gaiola dispunha de 3 quartos, sala de jantar com suporte para o recipiente das sementes, sala de estar e jardim interior, para que Micael soltasse as asas e cantasse com mais alegria que nunca. O pai chorou de alegria e emprestou a garagem a S. Valentim. O negócio prosperou, e vinha gente de todo o país para ver as obras do ferreiro prodígio. Em cinco anos S. Valentim tinha o seu estabelecimento, uma boa casa, e uma namorada belíssima chamada Maria Amorosa. Maria era tudo o que sempre sonhara. Bonita, esbelta, e amorosa, de nome e virtude. Não tardou que casassem com pompa e circuntância, em cima de um altar em ferro forjado e adornado com pétalas de papoilas campestres. O casamento fora marcado à pressa, pois Maria tinha engravidado, e o seu pai não iria gostar de saber que Maria não iria imaculada para o casamento. O seu pai era um homem conservador, com uma rigidez apenas inferior à rigidez dos seus punhos. O Sr. Teotónio era um ex pugilista de renome, ainda hoje lembrado pelo seu famoso soco de batatas, assim chamado graças ao estado em que deixava a cara dos adversários, com hematomas enormes do tamanho do dito tubérculo. Seis meses depois do casamento, eis que nasce o rebento esperado numa simulada cesariana, não fosse o Sr. Teotónio ainda conseguir fazer as contas aos meses, apesar do inchaço cerebral crónico que mantinha desde os tempos do boxe. O parto fora simples, e viria a marcar a vida da criança, ou pelo menos o seu nome. A parteira, a mulher do Vicente do talho, apenas disse “Puxe Maria, Puxe”, e quando se preparava para segurar a sua mão, ouve um grito e vê um bebé de 2.471 kg a voar pelo quarto e a parar com estrondo na porta do roupeiro. S. Valentim, que esperava ansiosamente à porta do quarto, fica em pânico e entra de rompante no quarto a gritar “Já pariu?”. A parteira, ainda atónita disse: “Oh senhor! Este não foi parido! Foi cuspido!”. O homem chorou de alegria e correu para a criança desmaiada no chão do seu quarto. Aquela frase da parteira ficou-lhe gravada na memória, e assim foi que, quando registou a criança decidiu assinalar o acontecido chamando a criança de Cuspido. Teimosamente, o homem dos registos não permitiu tal celebração, e obrigou a queda do s no nome do infante, passando-se a chamar Cupido Amoroso Valentim. Como o episódio do seu nascimento o sugere, Cupido era um diabrete, não parando um segundo no mesmo lugar. O pai achava piada à sua rebeldia, enquanto a mãe perdia claramente anos de vida a cuidar do seu filho. S. Valentim começou a levar Cupido para a oficina, e a verdade é que o míudo acalmava com o calor dos fornos e a observar o seu pai trabalhar. Isto, até a famosa encomenda das armas de caça. Um abastado homem do norte, um tal de Leopoldo Cação, encomendara um pequeno arsenal de caça, para a caçada monumental que ía organizar para comemorar o seu quinquagésimo aniversário. Cupido engraçou com os arcos e as respectivas setas que o pai forjava com arte e empenho. Temendo que Cupido de magoasse, S.Valentim mandou-o brincar para o jardim anexo à sua casa. No entanto a encomenda estava atrasada, pois S. Valentim perdera muito tempo a olhar por Cupido, negligenciando o seu trabalho. Cupido, com a sua natureza irreverente, conseguiu facilmente subtrair um arco e um punhado de setas da oficina de seu pai. Lá fora, procurou o que lhe parecesse um alvo interessante, e encontrou um caniche irritante que se passeava no jardim. Empenhado em trespassar com perícia o pobre canídeo, Cupido disparou duas setas que não percoram mais que 15 metros. Irritado, preparou-se para disparar a terceira. Puxou o braço atrás com toda a sua força, apontou, soltou a flecha, e caiu para trás com a força do arco. “Ahhhh!!!” Ouviu um barulho que não era o de um caniche em desepero. Olhou pelo meio de uma sebe, e viu Ezequeil Vinténs desmaiado nos braços de Lulu Milheiro. Ezequiel estava à uma hora e três quartos a tentar dizer a Lulu o quanto a amava, mas o nervoso miudinho, a juntar à gaguez, não lhe facilitaram a tarefa. Lulu pressentia-o, mas precisava de um sinal, pois sentia o mesmo por Ezequiel. Quando Cupido disparou a seta, Ezequiel preparava-se para falar. Mas as palavras não saiam. Lulu deseperava. De repente Ezequiel grita “ AHHHHHHHmo-te”, abraça Lulu, bate-lhe com a cabeça, no que os mais românticos chamaram um beijo impetuoso, e desmaia em seus braços. Lulu, agora sem os dentes da frente, sorria de felicidade enquanto a sua boca jorrava sangue abundantemente. Um mês mais tarde, quando saiu do hospital, Ezequiel fez questão de ir a casa de S.Valentim anunciar pessoalmente o seu noivado com Lulu, convidá-lo para padrinho, e agradecer ao seu filho Cupido, pela ajuda dada neste belo desenlace. Ezequiel nunca esqueceria aquele dia 14 de Fevereiro, até porque a seta o atingira num tendão e agora mancava um pouco da perna esquerda. Desde então, os habitantes daquela pequena cidade chamam o dia 14 de Fevereiro dia de S. Valentim.